Literatura

Retroses

Por PORTAL GRANDE PRUDENTE

28/04/2021 às 14:26:12 - Atualizado há

O ato de escrever resulta da permanente leitura de mundo. A faísca inicial se dá muitas vezes por inúmeras coincidências, outras tantas memórias, e demais circunstâncias para dar corpo a um tema que está o tempo todo diante de nós, mas que nos passa despercebido porque estamos sempre de passagens para "grandes realizações". E nos esquecemos que são estas pequenas ações que nos colocam na estrada definitivamente.

Abro o Estadão e paro diante de reportagem sobre "O Fio de Ariadne" onde se revela o "lado desconhecido de Iberê Camargo"; enquanto isso, vejo uma pessoa muito especial dando uns retoques a fio e agulha naqueles detalhes importantes de alguma roupa especial; ainda faz-me lembrar quando minha mãe precisava de "alguma corda", mas apenas tínhamos barbante: tendo o que se tem, estica e torce e junta e estica e torce e a corda faz-se. Muitas vezes atravessando praticamente todo o quintal até resultar em uma "corda" do tamanho exato (ou com alguma sobra) para o necessário.

Mais: achava que retrós era pecinha que deixava-se envolver pela linha para uso de alfaiates e costureiras. Não é.

Significado de Retrós: substantivo masculino - Fio para costura, torcido, feito de seda ou algodão mercerizado.

Significado de Mercerizar: verbo transitivo - Dar brilho, aparência sedosa a alguns fios ou tecidos, industrialmente.

Não vou aqui falar do conto "A Linha e a Agulha" de Machado de Assis (mas recomendo), e me permito pensar em quantas pessoas pertencem ao nosso círculo diário de contatos familiares, de amizade, de trabalho. Com certeza esse círculo atravessa por espaços inimagináveis. Afinal, nossa pressa diária não permite ver quanta gente está tão próxima, apesar da distância. Nesta semana me surpreendo ao descobrir que minha compra de alguns copos de vidro chegaram do Irã. Sim, ali no Irã, do Oriente Médio, do Golfo Pérsico. Não vou fazer o roteiro de viagem do adquirido copo de vidro, mas tenho de pensar um pouco mais sobre nosso relacionamento humano.

Para isso, tenho de recorrer a João Cabral de Melo Neto: "Um galo sozinho não tece uma manhã:/ele precisará sempre de outros galos./De um que apanhe esse grito que ele/e o lance a outro; de um outro galo/que apanhe o grito de um galo antes/e o lance a outro; e de outros galos/que com muitos outros galos se cruzem/os fios de sol de seus gritos de galo,/para que a manhã, desde uma teia tênue,/se vá tecendo, entre todos os galos."

É isso: temos pessoas em permanente relacionamento, com seus direitos e deveres, com responsabilidades para entendermos que estamos juntos tecendo manhãs, tardes, noites, madrugadas. Apesar de tantas diferenças, há uma que cada um de nós deve se preocupar: retomar aqueles fiozinhos que ligam a nossa essência como ser humano para tecer o grande painel o belo cenário da diversidade que caracteriza o nosso sonho de humanidade.

Carlos Francisco Freixo, luso-brasileiro, Membro da Associação Prudentina de Escritores-APE; poeta, escritor, diretor de teatro, compositor, produtor cultural, professor; autor dos livros Nove Meses Mais; Minha Hora Plena; Cacófatos Histéoricos; 111; Que Fado é Este?; Fui Covarde.

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